Um encontro de alto nível técnico, representatividade sociopolítica relevante e uma variada gama de lideranças, temas, perspectivas e visões de mundo marcou as atividades da “Caravana Infância e Comunicação” no Uruguai, numa demonstração inequívoca do protagonismo que o país exerce no debate público sobre a interface em foco na região. Desta feita, o evento foi promovido pela Voz y Vos, organização que integra a Rede ANDI América Latina.
O “Seminario Infancia y Comunicación: un diálogo en América Latina” foi realizado em 13 de outubro último, no Palácio Legislativo de Montevidéu. Com nível significativo de adesão institucional, contou com o apoio de 13 organizações locais, entre as quais El Abrojo, Asociación de la Prensa Uruguaya, Institución Nacional de Derechos Humanos y Defensoría Pública, UNICEF e UNESCO.
PANORAMA
Além da mesa de abertura, mediada pela coordenadora da rede ANDI AL, Paula Baleato, e da conferencia proferida por Suzana Varjão, da ANDI – Comunicação e Direitos, os debates foram travados a partir de mesas/eixos temáticos sobre políticas públicas e marcos regulatórios para o campo midiático; educação para os meios de comunicação; e produção de conteúdos audiovisuais de qualidade para meninos e meninas.
Antecipando o teor dos debates, Baleato traçou um panorama preciso sobre os problemas comuns, os avanços e os desafios a serem enfrentados pelas nações latino-americanas, na perspectiva de defesa, promoção e garantia de direitos de crianças e adolescentes no/pelo campo da comunicação de massa – aqui entendido como um ecossistema complexo, com diferentes níveis de poderes, práticas, conhecimentos, meios e estratégias comunicacionais.
AVANÇOS E DESAFIOS
Em síntese, a avaliação é de que prevalecem na AL a visão tutelar da infância; a criminalização de crianças e jovens ligados a setores mais pobres, “com crescentes demandas punitivas e reformas legislativas que representam retrocessos em relação aos direitos humanos”; e a forte concentração de propriedade dos meios de comunicação, “que limita a diversidade e o acesso igualitário de todos e todas à comunicação”, entre outros.
Sobre o processo de regulação de mídia na região, Baleato destacou alguns “impulsos democratizadores” de países latino-americanos, traduzidos por ferramentas legais, como a recentemente aprovada lei de proteção à infância do Uruguai, e várias lacunas. Vale destacar algumas, que convergem com os dados do amplo trabalho de pesquisa produzido e reunido no livro “Derechos de La Infancia y Derecho a La Comunicación”, lançado na ocasião:
- Os instrumentos legislativos tendem a regular os efeitos nocivos dos meios, com pouco investimento no estímulo às potencialidades positivas;
- As ferramentas legais e as políticas públicas conquistadas não estão consolidadas, tendo sua legitimidade frequentemente questionada pelo setor privado, nos tribunais;
- Poucos países regulamentaram o estímulo técnico e financeiro à programação de qualidade para crianças e adolescentes;
- Tampouco há previsão reguladora para o desenvolvimento de investigações acadêmicas sobre temas relacionados à interface comunicação e direitos da infância;
- Há ausência de amparo legal para a introdução da educação para os meios no âmbito do sistema público de ensino.
Ainda em consonância com o citado trabalho de pesquisa, Baleato apontou desafios a serem vencidos pelas nações, como o de garantir a privacidade de crianças e adolescentes nos meios de comunicação de massa; promover o acesso a conteúdos de qualidade; incorporar a alfabetização midiática e a educação para os meios no sistema educação de formal; e fortalecer o papel do Estado “em sua obrigação de garantir o direito de todos e todas”.
SUGESTÕES
A necessidade de se buscar o equilíbrio entre liberdade de expressão e respeito a direitos no campo midiático foi a tônica do diálogo da primeira mesa temática, sendo apontadas algumas soluções, como a criação e/ou o fortalecimento de mecanismos para fiscalização, promoção e proteção de crianças e adolescentes contra conteúdos inadequados, a partir de dispositivos legais e respeitando-se parâmetros e compromissos acordados internacionalmente.
Um dos desafios destacados pelos debatedores para a estruturação de um ambiente permanente de respeito, defesa e promoção de direitos humanos no campo da comunicação de massa é a descontinuidade político-administrativa dos sistemas de governança, sendo estimulada a construção de estratégias sustentáveis, capazes de sobreviver a tais descontinuidades.
POSICIONAMENTO
Como na Costa Rica, o posicionamento crítico de atores representativos da esfera jornalística foi de que a contradição entre direito de informar e direitos de crianças e adolescentes é “aparente”; de que “há limites para o exercício do jornalismo”; e de que “há espaço para um novo pacto entre sociedade e meios”, com vistas a um maior controle da sociedade sobre a comunicação de massa (Daniel Lema, presidente da Asociación de la Prensa Uruguaya).
Um dos destaques do seminário foi a perspectiva da iniciativa privada, exposta de modo tranqüilo, consistente e balanceado pelo empresário, advogado e ex-presidente da Asociación de Broadcasters de Uruguay Rafael Inchausti, que confrontou as preocupações dos que defendem e dos que temem a regulação de mídia, apontando a dificuldade (e necessidade) de modificação de “condutas arraigadas”.
“CENSURA INDIRETA”
De um lado está a “preocupação legítima” com a proteção de crianças e adolescentes, notadamente, na era das tecnologias de informação e comunicação, que “expõem meninos e meninas a cargas positivas e negativas”, sendo necessário “desenvolver meios de defesa contra conteúdos inadequados”, uma vez que a “indefinição de parâmetros claros faz com que os meios pisem em falso, afetando sua credibilidade”.
Na outra extremidade do complexo debate está a “preocupação com o impacto da regulação na liberdade de expressão”, a partir do “controle excessivo de meios, por interpretações subjetivas de normas”, que Inchausti classifica de “censura indireta”. Entre outros medos do setor empresarial, está o de que a aplicação de sanções pelo não cumprimento de normas “provoque o desaparecimento de veículos de comunicação”. Mas pontuou:
– A liberdade de expressão não é absoluta. E o campo da comunicação deve ser regulado, para facilitar o diálogo com a sociedade.
EDUCAÇÃO PARA OS MEIOS
Os desafios a serem enfrentados pela América Latina para incorporar a alfabetização midiática e a educação para a comunicação no sistema formal de ensino foram objeto do debate da segunda mesa do seminário. Uma estratégica considerada importante, num contexto de convergência “que não é apenas de meios”, mas de idiomas, culturas, sistemas de valores, visões de mundo…
Em outros termos, um cenário que tem impactos positivos e negativos no universo infantojuvenil, propiciando, a um só tempo, intercâmbios enriquecedores, e, em outra direção, riscos de homogeneização e enfraquecimento de identidades – o que torna imprescindível ensinar crianças e adolescentes a pensarem criticamente os meios, indo além da perspectiva operacional, ou do uso das tecnologias apenas como suporte para a aprendizagem formal.
CONTEÚDOS DE QUALIDADE
Fechando o leque de debates do seminário, e mesclando teoria e prática, uma mostra de experiências direcionadas à produção de conteúdos audiovisuais de qualidade para meninos, meninas e adolescentes no Uruguai e na Argentina – as dificuldades, os desafios, e, em contraponto, os casos de sucesso, lançando luzes sobre uma estratégia ainda pouco desenvolvida na América Latina.
Uma dificuldade comum: a ausência de investimento permanente, com produções audiovisuais de qualidade patrocinadas ora pela iniciativa privada, ora pelo governo, mas pontuais. Como sintetizado por Virginia Bogliolo, há, no Uruguai, “capacidade de produção, mas não há uma política clara, de Estado, como ocorre na Argentina” – o que submete o setor a descontinuidades e, consequentemente, a perda de talentos, conhecimentos, capital técnico.
INTERROGAÇÕES
Outro desafio a ser vencido é a conquista de espaços na TV para a exibição de produções direcionadas aos públicos em foco. A ausência de compreensão sobre a importância desse tipo de produção para o desenvolvimento de crianças e adolescentes é tamanha que produtores independentes constroem narrativas audiovisuais com recursos próprios, mas não conseguem espaço para veiculação gratuita nos canais uruguaios.
Um destaque positivo são os programas e oficinas de formação audiovisual direcionada a professores – em âmbito experimental, porém. O que parece ser ponto comum no leque de interrogações sobre como fortalecer este aspecto importante para a estruturação da cidadania de meninos e meninas pode ser traduzido pela pergunta de Ricardo Casas, diretor do Divercine (festival de cinema dirigido a crianças e adolescentes): “Como sobreviver a governos?”.
CASO DE SUCESSO
Um relato que despertou interesse geral foi o da argentina Mariana Loterszpil, da Latinidad Argentina (empresa de produção de conteúdos audiovisuais), não só pelos extraordinários produtos exibidos, mas pela clareza dos parâmetros que orientam a construção de narrativas midiáticas dirigidas a crianças e adolescentes, debatendo diferenças e dando visibilidade a temas “esquecidos”, como o da migração, sob o ângulo de visão de meninos e meninas.
Como pontuado por Loterszpil, em “um mundo cambiante” como o da contemporaneidade, é imprescindível a estruturação de marcos legais e o consequente estabelecimento de parâmetros que orientem o desenvolvimento de uma TV de qualidade – o que não pode se restringir a questões de ordem estética, mas basear-se no fato, por exemplo, de que “a infância não é uma só, mas várias”.
– Claro que se deve levar a estética em consideração, mas na perspectiva de cores, imagens e texturas que formam identidades, resumiu.
APOIO
Importante ressaltar a manifestação de apoio da Unesco ao evento, por meio de vídeo gravado pelo conselheiro de comunicação e informação do órgão das Nações Unidas para o Mercosur, o Chile e países andinos, Guilherme Canela, no qual o arguto cientista político alerta para a importância de se pensar conjuntamente liberdade de expressão e proteção de direitos de crianças e adolescentes. “Não é uma coisa ou outra. É uma coisa e outra”, reforçou.
A maneira de pensar e agir em relação ao vasto e complexo campo da comunicação de massa deve, por analogia, ser estendido aos mecanismos e estratégias de promoção do direito destes grupamentos vulneráveis da(s) sociedade(s) a uma comunicação de qualidade e de proteção de meninos, meninas e jovens contra conteúdos midiáticos inadequados e nocivos ao seu pleno desenvolvimento.
LANÇAMENTO
Como ocorreu na Bolívia, na Guatemala, em Costa Rica e na Nicarágua, Suzana Varjão proferiu a palestra «Derechos de la niñez y derecho a la comunicación: ¿cómo armonizarlos?», expondo dados do livro “Derechos de La Infancia y Derecho a La Comunicación”, que esboça um painel mundial sobre a interface em foco, reunindo experiências desenvolvidas por nações democráticas, na perspectiva de promover direitos e coibir violações no campo midiático.
Além dos temas registrados no livro, foi compartilhada a tecnologia social desenvolvida pela ANDI, em conjunto com outras organizações sociais do Brasil, como o Intervozes e a Artigo 19, para contribuir com o enfrentamento de um fenômeno de comunicação que vem violando direitos humanos e discursando contra a democracia brasileira: os programas de rádio e TV conhecidos como “policialescos”.
O monitoramento resultante da construção da citada tecnologia expôs o desrespeito a pelo menos 12 leis brasileiras, sete instrumentos multilaterais e três dispositivos de autorregulação, gerando nove tipos de violações de direitos humanos em tais programas – o que permitiu evidenciar uma das perspectivas centrais do livro “Derechos de La Infancia…”: a necessidade estruturação de mecanismos que orientem o campo midiático e façam valer os acordos legais.
A CARAVANA
A “Caravana Infância e Comunicação” é uma iniciativa da ANDI – Comunicação e Direitos e das redes ANDI Brasil e ANDI América Latina, e tem como objetivo debater temáticas e estratégias relacionadas à defesa e promoção de direitos no campo da comunicação de massa. Foi estruturada a partir de amplo trabalho de investigação, que mapeou experiências desenvolvidas por países democráticos em diferentes partes do mundo.
Os insumos construídos foram reunidos no livro “Direitos da Infância e Direito à Comunicação”. Traduzida para o inglês e para o espanhol, a publicação foi lançada inicialmente em 10 capitais brasileiras, e, agora, estimula o debate em seis países da América Latina. Depois de passar pela Bolívia, pela Guatemala, pela Costa Rica, pela Nicarágua e pelo Uruguai, a “Caravana” segue para o Paraguai.
A “Caravana” é patrocinada pela Petrobras e recebe apoio de diferentes organizações, nos países por onde passa, como, no caso uruguaio, INAU, Unicef, Unesco, Comunicación Democrática, CDNU, MEC, Institución Nacional de Derechos Humanos y Defensoría Pública, Asociación de la Prensa Uruguaya, Facultad de Información y Comunicación, a 30 Años más Democracia, Parlamento del Uruguay, Presidencia Cámara de Representantes e El Abrojo.
A denominação, simbólica, foi pensada para estimular o debate sobre a interface comunicação e direitos de crianças e adolescentes dentro do modelo de ação em rede: a partir do deslocamento de um ponto (no Brasil), estimular os demais “nós” da teia latino-americana, provocando a mobilização, a articulação e o fortalecimento mútuo das nações em relação a esta importante estratégia de desenvolvimento humano.
http://www.andi.org.br/pauta/caravana-infancia-e-comunicacao-no-uruguai